quinta-feira, julho 30, 2009

Pessoal, vou postar aqui finalmente meu conto Lovecraftiano que é um "extra" para minha primeira edição vindoura do Cometa #9. O processo demorou, dei uma relida e uma reescrita, mas não sei se vai estar OK. Para quem não conhece H. P. Lovecraft, pode encontrar mais indo nesse site. Tive uma pequena ajuda pelo twitter do Warren Ellis, que foi até engraçado ter sido respondida.



Eu ia colocar umas imagens, mas acho que seria mais interessante deixar a mente do pessoal que ler viajar sem muitas referências imagéticas. Só colocarei uma única imagem, que é um print screen do Google Earth do lugar.

Foi interessante fazer esse texto, pois tentei emular o estilo de Lovecraft, que é sempre muito cheio de referências, e o meu próprio texto é muito calcado em fatos, pessoas e eventos reais. Se quiserem pesquisar alguns nomes, irão encontrar a história toda em uma margem de plausabilidade muito bacana!

Muito Além da Sanidade


Encontro-me aqui forçado pelas leis do destino, tão acima das esferas humanas da compreensão, e ao mesmo tempo como conseqüência de meus ímpetos juvenis. Tão intensos como os instintos de um lobo das estepes, e tão efêmero quanto à vida de uma Borboleta Monarca. Condeno minha vida a uma prisão de constantes medicamentos, tremores repentinos, tiques nervosos e uma epilepsia misteriosa, surgida do nada.

Minha aguçada percepção e curiosidade, somada com meus talentos na área da antropologia conseguiram-me arrumar rapidamente um trabalho como tutor da cadeira de Antropologia Física, mas meus esforços em criar a matéria de Antropologia Mitológica e palestras a respeito de plausíveis civilizações Atlânticas e anti-diluvianas chamaram a atenção do meu atual patrono, uma ordem a qual se não está familiarizada ao ler estes escritos, talvez corra algum perigo mais real do que arrepios e hesitações no fundo de sua alma.

O Planetário de Expedições Extraordinárias com certeza absoluta é uma instituição das mais dignas e nobres que conheço. Não estou muito certo sobre seu período de formação, pois aparentemente, os grã-mestres dessa misteriosa associação nunca deram as caras para seus membros expedicionários, tal qual o interlocutor que vos fala, mas recordo-me de que disseram ao me recrutar, que o Planetário era uma sociedade fundada desde os tempos da Renascença, tendo outros grandes nomes da ciência, literatura e política como membros.

Um grupo muito dedicado de homens, a meu ver, que decidiu percorrer localidades remotas e misteriosas, em busca de conhecimentos secretos, os quais, uma grande parte da nova era da razão tornou a mitificação do desconhecido um passo da irrealidade.

Como que vos digo, o milagre do vapor e dos engenhosos mecanismos e engrenagens enriqueceram as terras e mudaram o status geopolítico do mundo. O poder de reis caiu perante grandes corporações. O fordismo é o novo exemplo de vida do ser humano, que deixou seu papel de agricultor no campo de seus senhores feudais, para ir operar as máquinas frias e oleosas de seus senhores empresariais.

As constantes chacotas de meus colegas por minhas idéias impactantes e muitas vezes contestadores a Deus e a santa palavra são mais do que provas disso. Assim como Darwin, qualquer nova tentativa de elucidar o mistério da vida é repelida pelo status quo desse mundo dominador.

Entretanto, a descoberta do Planetário de fato muito alegrou minha alma atormentada por essas idéias de um tanto incabíveis. Haviam pessoas que buscavam não só a verdade, mas sim, os segredos irrevelados por de trás das cortinas da irracionalidade.

Fui contatado por um jovem senhor de cabelos brancos, chamado Holden Frost, e fiquei fascinado com a menção de meus trabalhos a respeito da probabilidade da era dos homens atlantes pré-babilônicos. Fui convidado a participar de uma expedição a qual o Planetário havia organizado um bom grupo recentemente e, como um antropólogo de respeito e de mente aberta, seria uma valiosa aquisição.

Partimos de Trem até Nova York, chegando lá tomaríamos um vapor até a Inglaterra e depois seguiríamos rumo a Reykjavik, na Islândia, onde a tripulação já estava se reunindo.

Enquanto viajávamos o senhor Frost me pôs a par dos motivos para todo o interesse da associação, em enviar uma expedição para as remotas e pouco exploradas planícies gélidas da Groelândia. Aparentemente foram encontrados alguns habitantes da região, esquimós, de uma tribo particularmente distante e intocada, cuja existência era apenas uma mácula, uma mancha a ser esquecida por todas as demais.

Essa tribo maldita aparentemente faz elegias macabras para deuses pouco conhecidos, seqüestrando membros de outros grupos que nunca mais são vistos. Esse grupo encontrado atualmente foi detido após tentar raptar o filho de um pescador Português, ancorado com seu barco na cidade portuária de Ittoqqortoormiit (fundada recentemente, que também será onde aportaremos no início de nossa expedição).

Por sorte, o pescador, mais seu capitão (um dinamarquês entendido de alguns mistérios do mar) e alguns homens da tripulação conseguiram descobrir o paradeiro do jovem rapaz e capturar seus seqüestradores.

Para assombro, os homens entoavam um estranho mantra, uma canção de festim e louvor a nomes perdidos, enquanto perpetravam algum tipo de ritual macabro, o qual, para a sorte do jovem filho do pescador, não fora concluído. O local era uma pequena cabana gélida, fora dos limites da cidade, cujos moradores foram encontrados eviscerados e despelados.

Deve ser ressaltado um curioso fato desse resgate. Quando o grupo de homens, fortemente armados com espingardas e facões adentrou no local do malévolo rito, nenhum desses misteriosos cultistas esboçou qualquer reação. De fato, mesmo após amarrados e subjugados, eles continuaram a entoar frases profanas. Ainda mesmo após Thorsten, o imediato alemão e católico fervoroso, atingiu a face de um dos homens, quebrando-lhe a mandíbula, este não cessou d e repetir: “Ph'nglui mglw' nafh Cthulhu R'yleh wgah'nagl fhtagn” e “Ahk’tom E’ph fluth harh en’lorth Umbros”.

Nesse instante me lembro de minha leitura de uma cópia remanescente do “Necronomicon”, um livro maldito escrito pelo louco árabe Abdul Alhazered e dos Manuscritos Pnakóticos, pelos breves momentos que pude ler com atenção na universidade. A primeira estrofe me remeteu a uma breve passagem do livro dos mortos, “em sua casa em R’lyeh o morto Cthulhu espera sonhando”, o mesmo culto se encontra em várias partes do globo, entre tribos que seguramente jamais se encontraram devido a sua própria vida de isolamento geográfico.

A segunda passagem estava presente em um dito nos manuscritos, significando “Além do firmamento Ahk’tom E’ph será invocado pelos Umbros”. Enquanto Ahk’tom E’ph é citado como uma deidade que se hospedava no céu, em uma constelação que morreu há mais de dois mil anos, a parte dos Umbros, entretanto, eu desconhecia, pois não era citada em nenhum lugar.

O senhor Frost me contou que era um mito da região, sobre espectros que levavam a alma de crianças para apaziguar sua fome de carne nova e macia. Aquilo me percorreu pela espinha como um choque frio, provavelmente, mais frio do que eu iria sentir no decorrer da viagem.

No fim, estávamos viajando para um lugar desconhecido entre as geleiras, onde essas supostas criaturas se escondiam da humanidade, não por medo, mas por costume. Os esquimós soturnos apenas sacrificariam a criança para ofertar para essas criaturas, e ter seus bebês salvos desse terrível final. Com algumas ordenadas de onde ficaria o local dessa cidade gélida, o Planetário decidiu enviar um grupo atrás dela. “O que é improvável”, me contou Holden, “está sendo tratado como impossível... O remoto é o destino de todas as nossas expedições”, concluiu ele, indo para sua cabine.

Em Reykjavík conhecemos o capitão Robert Bartlett, que jurou por sua honra que nos levaria até nosso destino com sua embarcação, o Effie M. Morrissey custasse o que custar. Fiquei sabendo que a expedição seria acobertada por outra. Dessa forma poderíamos procurar a remota possibilidade que queríamos, sem chamar atenção da comunidade científica. Notei que esse era um modus operanti de toda a associação, que já sabia que as reações da comunidade acadêmica mundial olhariam com desdém para qualquer descoberta além de suas próprias capacidades de absorção.

Algum tempo depois, estávamos em Ittoqqortoormiit, e ficamos a par de toda a situação com alguns homens da embarcação que permanecia atracada no porto.

Infelizmente, não pudemos conversar pessoalmente com os cultistas capturados. Depois de revelarem o que sabiam, foram encontrados mortos no quarto reservado como sela para eles. Dos cinco presos, quatro foram encontrados com as gargantas dilaceradas, a mordidas, pelo único que restou, que pacientemente dispôs os corpos em uma posição na qual formavam um estranho e desconhecido símbolo, usando o sangue de seus companheiros mortos como tinta e os pés como pincéis, completou o rascunho do mal pelas paredes e chão de madeira, e, finalmente, se jogou ao chão para quebrar seu próprio pescoço com o impacto da queda, ficando assim no centro desse hediondo teatro de bonecos mortos.

Tudo isso aconteceu poucos dias antes de nossa chegada. Durante uma noite na qual a neve assobiava por entre os vãos da vila e nenhum dos guardas em questão escutou sequer um único ruído vindo do lugar.

Examinamos o local, sentindo um cheiro pútrido subir ao ar, mesmo para um local tão frio e conservado, havia um cheiro no ar que mostrava que não era apenas a decomposição dos cultistas enlouquecidos que poderia gerar tal odor ofensivo, mas algo mais profundo do que isso. Olhei a forma dispostas dos corpos, em uma espiral até o centro do quarto, seus corpos descreviam uma espiral que terminava no crânio partido daquele cuja mandíbula estava coberta em sangue coagulado. Uma relação eu fiz, com um abismo profundo e negro. Era de lá que exalava o enxofre, o perfume maléfico de entidades que apequenariam Lúcifer, e uma fragmentação da fragrância do próprio mal.

Arrumamos as nossas coisas em um dia e meio, para então zarpamos em direção das coordenadas recebidas pelos suicidas. Elas apontavam para um local inexplorado naquela região, a cadeia de montanhas conhecidas como Gunnbjorn Fjeld. A vários dias de viagem rumo ao sudoeste, teríamos que fazer uma viagem mais longa por terra. Ao sul daquela região era composta de sua maioria de rocha bruta, e, com o acumulo de gelo flutuando na costa, era muito perigoso irmos com embarcações menores levando nosso equipamento e suprimentos. Foi decidido pelo Capitão Bartlett que rumaríamos por uma das entradas do grande Scoresby Fjord, nomeado com o nome do famoso explorador, e então seguiríamos a pé, com dois trenós de suprimentos levados por oitos cães cada.


- Clique para aumentar


Apesar de minhas preocupações em torno de minha aptidão física para agüentar a jornada (veja bem, eu nunca fui um grande desportista ou jogador nato de rugby, sendo que usava minhas forças físicas para tremer e manter-me aquecido), o grupo se mostrou confiante no sucesso da empreitada. Além disso, se acreditava que não iria durar mais do que uma quinzena de dias a nossa viagem, após desembarcarmos do Morrissey, assim sendo, não iríamos nos desgastar tanto.

A partir daí meus caros, devo-lhes deixar com outro rascunho, de outro tempo. Daquele tempo, para ser mais preciso. Preciso ser sinceros e dizer que minha memória é um eclipse congelado no tempo (se me permitem o trocadilho), em relação a esse momento específico. Graças ao meu fiel diário, consegui restaurar lembranças que, foram felizmente esquecidas. Assim anexo aqui como forma de dar continuidade a minha narrativa.

Digo-lhes, que a última coisa que me lembro desta ocasião, é de ter testemunhado a bordo daquela histórica embarcação, uma maravilhosa manifestação de luzes, uma Aurora Boreal como uma coroa no topo do planeta, ainda não tinha percebido, de fato, que não era um sinal de celebração, mas sim, um aviso dos céus.



21 de Setembro de 1926


Nesse momento enquanto escrevo, estão trazendo e verificando os suprimentos para a viagem. Ao que parece, além de alguma aparelhagem cientifica e de sobrevivência, temos muita comida, mas mais da sebosa gordura de baleia do que qualquer outra coisa.

Comigo, conto cerca de mais de 10 homens ao todo, além do senhor Holden, contamos com dois dinamarqueses, Bjorn e Einar, acostumados com essas baixas temperaturas, Dagfinn, um finlandês jovem e muito mais magro que eu, McLaurence, um escocês tremendamente forte que seria capaz de carregar um trenó sozinho, Nansen, o renomado médico noroueguês, Dmtri Vladschenko Yurinovich, um atirador russo, que pelo que ouvi falar, caçava animais raros para um circo parisiense, Henry Foster, um inglês que emprestava seus serviços da RSL (Royal Society of London), mesmo sabendo que poderia ser excluído da sociedade por participar de uma missão dessas; Albert Loremaster e August Peddleton, geólogo e arqueólogos da Miskatonic, dos Estados Unidos, que, creio eu, vieram com o mesmo motivo que o meu para essa empreitada, e o bravo capitão a nos guiar com sua experiência e rijeza, apesar da idade!

Ao que parece em alguns minutos começaremos a longa caminhada. Voltarei a escrever assim que pararmos para descansar.


22 de Setembro de 1926


Montamos acampamento depois de 6 horas de caminhada. Eu não sabia, mas já viramos a noite. Estão armando algumas barracas para nos proteger do frio, não há muito tempo para se construir iglus, mas já ergueram uma parede de gelo para bloquear um pouco os ventos.

Amanhã andaremos por mais umas horas, aproveitando sempre a zona de crepúsculo, onde a luz é suficiente e o calor (apesar de confortante), não auxilia no derretimento do gelo em que andamos, criando massas de ar quente e deslocamentos de ar frio em nossa direção.

Isso me faz pensar que um balão de ar quente seria interessante para essa jornada, mas, como bem disseram, seria como navegar com um barco sem remos e sem velas, estando a mercê das correntes.


25 de Setembro de 1926


Encontramos algo que nos estarreceu. Havia um senso comum de deslocamento e conversamos em vários momentos para saber se aquilo era possível.

Um corpo de baleia Orca encontrada em meio a essa imensidão branca, a milhas de distância de qualquer fluxo de água grande o suficiente para que ela nadasse até aquele ponto. Surgiu uma teoria entre nós de que poderia ter nadado por entre uma fenda subterrânea de água, e quando emergiu para recuperar seu grande fôlego, foi surpreendido por alguma placa sub-áquatica de gelo que o trancou na superfície congelada. Parecia plausível, apesar de fantástico, mas o solo embaixo não era puramente repleto de gelo, como ocorre em vários locais do ártico e do antártico.

Outra conjectura seria a da criatura ter sido congelada por éons em alguma torrente marinha, e acabando por descongelar em algum morro próximo de gelo e ter deslizado até aqui, conforme as camadas eram levemente aquecidas por curtos dias a fio. Essa hipótese me parecia ainda mais irreal, mas quando se apresentam novos fatos ao nosso já obeso ego, inchado de conhecimento e com os tornozelos recusando-se a correr em busca de novas possibilidades, qualquer coisa pode ser e ocorrer.

Entretanto o que aferroou qualquer devaneio de explanações científicas (por mais bizarras que fossem, ainda sim, dentro de probabilidades ínfimas), foi o fato da criatura estar morta a poucos dias. Mesmo com o frio mantendo seu corpo longe de um estado de decomposição avançado, foi possível se perceber que ela foi carregada até aquele ponto, depois de morta. Grandes nacos de sua carne haviam sido rasgadas, por cortes que assemelhavam-se a dentes poderosos de um mamífero muito maior do que um leão, segundo o próprio Dmtri pode confirmar. Além disso, ao redor de sua cauda, podemos conferir vários pontos de pressão extrema, afundando e cortando a pele, como um braço mecânico ou mão de um ser muito grande (porém, menor que a baleia), poderia ter feito.

Meus pensamentos voltaram-se para a lenda dos Umbros, as criaturas que foram citadas anteriormente pelos cultistas. Será que um deles (ou pior, vários), foram até o mar mais próximo e capturaram essa criatura? Arrastando-a até esse ponto da terra firme? Se sim, porque será que deixou essa enorme presa neste lugar?

Muitas perguntas me atordoaram por um momento breve. Talvez eu deva levar essas minhas indagações ao restante do grupo, mas dessa forma iriam se mostrar muito acima de nossas expectativas ao redor das mesmas.

A respeito do monstro, apesar de impróprio para nós, iríamos cortar pedaços de sua carne para alimentar aos cães, mas alguma coisa fazia com que eles rosnassem e repudiassem simplesmente chegarem perto da baleia, como se farejassem em sua pele fustigada e entranhas expostas, o mesmo fedor maléfico que pude sentir ao entrar em um local repleto de homens que se suicidaram como tributo ao desconhecido.


27 de Setembro de 1926


Ouvimos uma série de latidos dos cães durante a noite. Eles latiram simplesmente a noite toda, e para nosso espanto, não tinham mais energias para latirem pela manhã. De fato, nós dormimos muito mal com isso, e as represálias não adiantaram para acalmar os animais.

Ao acordarmos, notamos que um deles havia partido as amarras e fugido. Estranhamente, não parece ter sido mastigada até esse ponto, e o cão não teria como gerar tanta força assim, a ponto de partir a corda.

Eu e meus companheiros estamos sentindo alguma coisa rondar. Passaremos a manter rondas armadas com rifles durante a noite.


28 de Setembro de 1926


Dois relatos importantes. O Primeiro é sobre encontrarmos algumas partes do cão que teria fugido na noite interior. Para ser mais sincero, encontramos apenas o couro e seus pelos arrancados, como uma carcaça vazia, morta e despelada.

Observando mais aproximadamente, acreditamos que alguma coisa rasgou-a, mas de modo muito brusco e torpe, como se recortasse com algum tipo de garra e de um modo totalmente violento.

Não havia, entretanto, nenhum sinal de sangue ao redor, como se a neve absorvesse tudo. Um monstro a quase nos cegar.

Pela primeira vez, sentíamos que não estávamos simplesmente nos metendo com lendas improváveis ou apenas resíduos de um povo que deixou sua marca na história desse local remoto. Havia algo quase como que sobrenatural no ar, e isso poderia arrancar nossa pele com unhas mais afiadas que a lâmina mais cortante feita pelas mãos do homem.

Quando anoiteceu, peguei o primeiro turno de vigília. Não sou um homem dos mais atentos, muito menos daqueles cuja a pontaria é algo notável. Alguns dos homens que estão conosco serviram na primeira grande guerra, mas somos todos iguais nessa jornada. Perdi-me por um momento a olhar o céu e recordar das estrelas e suas constelações.

Nesse momento a grande imensidão negra, pontilhada por brilhos de diversas intensidades, atirou em algum lugar do horizonte próximo, uma gota de seu sangue. Vi um estranho objeto cair em alta velocidade, além das montanhas mais próximas. O corpo celeste parecia ter sido atirado do firmamento como se fosse um anjo profanador expurgado dos céus e banido para uma terra de sofrimentos.

Segundos depois, precipitou em um grande brilho, que iniciou uma estranha reação no céu e na terra. Primeiro, o impacto fez com que o chão tremesse e todo o restante do grupo. Saíram das pequenas barracas amuradas rapidamente, se juntando a mim, para vislumbrar uma estranha formação de fumaça cintilante subir, como um vulcão cuspindo prata em pó de seu cume.

Após isso, conseguimos ver ao longe o movimento da neve no topo das montanhas, formando uma onda de pura espuma sólida, descendo a uma grande velocidade, em uma avalanche que destruiria facilmente qualquer cidade de médio porte. Quando o som ecoou em nossos ouvidos, soubemos que se tivéssemos dentro de nosso cronograma inicial, e não tendo gasto algum tempo parando para analisar o que ocorreu no caminho, poderíamos estar soterrados nesse instante por esse acontecimento imprevisto.

Apesar de alarmados, o grupo permaneceu confiante. Todos sentiram isso como um sinal do destino para seguirmos em frente, pois outro acaso estelar desse nível, dificilmente ocorreria duas vezes, e com o grande monte de neve recentemente descendo do topo, isso diminuía as mórbidas chances de sermos engolfados por isso.

Entretanto, eu achava toda aquela situação um presságio totalmente avesso as acepções de meus companheiros.


30 de Setembro de 1926


Até o momento, estou aterrorizado. Minhas mãos não cessam de tremer com o que vi. Penso se meus olhos realmente compuseram todos aqueles acontecimentos horríveis que vou relatar hoje. No palco, a dor, nosso anfitrião, é o horror em pessoa.

Estava me recolhendo, após meu turno de vigília. Arumava minhas coisas para descansar mais uma noite, após dois dias mais “calmos” por assim dizer. Pensava em muitas coisas, quando finalmente ouvimos um grande estrondo de rifle ressoar há poucos metros do acampamento, assim como um grito humano rasgado, dilacerado em dois.

Levantamos o quanto antes, armando-nos com o que havia mais próximo. Agarrei uma antiga pistola Colt peacemaker, cuja qual rezei para que não estivesse tão congelada quanto minha pontaria. Meus passos gaguejavam enquanto eu corria e eu deixava lá atrás a pouca coragem que acreditava ter. No ponto de vigília, onde queimava algumas tochas protegidas, miramos as poucas lanternas que tínhamos.

Foi aí que o impossível nos atingiu.

O pobre Dagfinn, que fazia a vigília nesse momento, parecia flutuar mais de um metro no ar, como se estivesse estirado em um divã romanesco, porém, sua altura total aumentara consideravelmente. Mais de um metro para ser mais preciso. Cento e poucos centímetros entre a parte baixa de sua cintura e sua região toráxica, ligados por suas tripas, presas como uma corda frágil e pegajosa, enquanto o restante de seus órgãos caíam como figos derrubados de uma cesta.

Nesse momento, enquanto nossos fôlegos ficaram congelados no frio daquela terra, percebemos na eternidade de um segundo, que havia algo o erguendo acima do chão. Somente quando os dois pedaços de seu corpo foram atirados em nossa direção tomamos em nossos nervos e reflexos a ciência da ameaça. Nos instantes que se seguiram, conseguimos mensurar o tamanho de tal oponente e seu perigo.

Eu, mais do que todos, senti o peso de tal atroz besta.

O corpo de Dagfinn, pelo menos sua parte superior me atingiu com força, como se eu fosse atropelado por um cavalo a galope. Cai ao chão, com seu dorso aberto e oco sobre o meu peito. Meu maior assombro, mais do que o cheiro e o toque do sangue quente se esfriando e tingindo minha pele, foi ver os olhos revirados do jovem, pálpebras em um movimento aleatório, como em um sonho mortal, ou um pesadelo feito realidade, gemendo com sua boca trincada, dentes batendo nos últimos instantes de uma vida que persistia em se agarrar ao fio de prata, já rebentado.

Seu crânio estourou em muitos mais pedaços naquele instante, seus olhos perderam o brilho umedecido que reluziam. O gelo ficou rubro e cinza. Minhas mãos tremeram com o único tiro que dei nessa expedição. Para dar ao rapaz pelo menos um alento, e não sofrer nesses momentos finais de sua vida.

Horrificado e enojado, esforcei-me para afastar a carcaça morta de Dagfinn de cima de mim. Com algum esforço, levantei-me, com as pernas balançando ao tentar se equilibrar na realidade. Arqueei-me e vomitei. Avançando um pouco para frente e retomando parte do que estava acontecendo. Henry Foster, amedrontado, havia gasto todas as balas de seu revolver, quase acertando os outros, e nesse instante, podemos ver algo que não podia ser visto, se mover.

As luzes de nossas lanternas mostravam um volume de... alguma coisa, avançar em direção ao inglês, que apertava o gatilho inútilmente, fazendo cliques ritmados na ausência de munição em seu tambor. Aos meus olhos, “aquilo”, era como a superfície de um lago cristalino, ao se jogar uma pedra, criando ondulações que turvavam momentaneamente a luz em sua borda em expansão. O fantasma (acredito já poder chamar, de fato, aquilo de fantasma), ergue-o ao ar e arremessou ao chão, assim como um fazendeiro ara a terra, matando-o.

A velocidade da saraivada de tiros não pode acompanhar a da criatura, que saia da direção da luz, arrastando o corpo de Foster para a escuridão.

Ela iria acabar com todos nós. Um único monstro desses iria pegar um por um e nos levar para o meio das trevas. Nossas peles seriam arrancadas muito antes de chegarmos até ao sagrado terreno desses seres.

Minha cabeça estava matando meu corpo muito antes da hora, entretanto. Holden assumiu a liderança rápida, ordenando a todos. Ficamos de costas, em um círculo de atenção, e, pela primeira vez, fizemos silêncio, conseguindo então escutar o som, parecido com rochas caindo umas em cima das outras, em uma cascata.

Ao virarmos nossas lanternas, algo caio próximo de nosso grupo. Parecia um sobretudo, mas na verdade, era tão somente a pele arrancada de Foster, embolada com suas roupas. O som de pedras rolando, era na verdade de ossos sendo mastigados. O Corpo de Henry era consumido como carne em salmoura. Ele ficou compactado dentro de um espaço, ainda um metro e pouco acima do solo. Seus órgãos e membros. Indefiníveis.

A criatura avançou, como se não percebesse que seu trunfo havia terminado. Todos atiraram, excetuando eu. Não consegui parar de tremer ao olhar para o corpo de meu companheiro de viagem em um estômago invisível. Ouvia os estouros dos disparos, eles pareciam fazer efeito no que quer que aquilo fosse, pois passou a tentar desviar, mesmo depois da segunda rajada de tiros. Era possível se perceber que os projéteis perfuravam uma camada sólida de “ar”, ficando alojadas na carne hipotética do ser.

Provavelmente a criatura não estava acostumada com esse tipo de armamento, e sim com lanças dos esquimós e poucos ataques de animais marinhos, como as baleias que caçava. Arrogância e orgulho, não eram somente características humanas, posso salientar, mas de todas aquelas criaturas com algum desvio além do equilíbrio com as leis da natureza.

De súbito, quando balas o suficiente foram deflagradas para matar uma manada de elefantes, a criatura tombou, criando um estrondo tão grande quanto o pavor que causou e levantando pedaços de gelo ao ar.

Depois de alguns instantes, assim que o grupo conseguiu voltar ao foco normal, por mais estranho que soasse a normalidade do momento, decidimos verificar o Umbro. Analisando o com o tato, podemos conjecturar a respeito de sua natureza. Ele possuía uma pelagem densa, maior do que qualquer urso branco, segundo Dmtri. Sua forma era humanóide, com pernas e braços, possuindo também, unhas afiadas como lâminas. A estrutura parecia a de um grande babuíno, assim como as lendas do Himalaia, como o Yeti, mas muito massivo. Seu crânio, apesar de possuir boca e nariz, possuía uma ausência de olhos. Muito possivelmente, vivendo em um lugar como esse, a luz seria cegante, além do que, ele ainda teria vantagem em muitos pontos sobre outras criaturas com a visão desenvolvida.

Nesse momento o grupo está discutindo o que faremos. A lógica diz que deveríamos voltar, mas...


2 de Outubro de 1926


Parte do grupo decidiu retornar carregando o corpo de Dagfinn e Foster, além da própria criatura, é claro. Enquanto o restante ira se dirigir para as coordenadas marcadas, já nas montanhas, e terminar a expedição de uma vez por todas.

Decidi seguir com o grupo. Apesar de temer e saber que a decisão mais acertada seria fugir, Holden me lembrou que é para isso que eu vivi e por isso que estava ali naquele momento. De certo que isso era algo a se ponderar, minha vida não tinha a mesma cor que agora e, apesar de todo meu medo, eu sobrevivi. Nunca se sabem as chances de quem morrerá ou de quem viverá, mas sim o que cada um tentou alcançar durante esse tempo.

Por sorte, não faltava muito para chegarmos ao nosso destino. Caso tivéssemos que escalar até o cume dessas montanhas, levaria muito mais tempo, entretanto, é apenas contornar os pés de algumas delas até chegarmos ao local.

3 de Outubro de 1926


Graças as precisas instruções do capitão Robert Bartlett, chegamos em Gunnbjørn Fjeld. Os relatos dos eskimós cultistas não foram errôneos, apesar de não saber como eles sabiam a localização deste lugar, eles conseguiram nos trazer até aqui. Após muitos sacrifícios, conseguimos.

A neve nos castigou nessa última parte da jornada, como um chicote do divino. O vento e o gelo quiseram nos atrapalhar, mas depois de tudo o que passamos, não eram mais do que pequenos obstáculos a serem transpostos. Alguns dos nossos companheiros perderam suas inestimáveis chamas, enquanto caminhávamos para este branco oblívio. Honramos as suas memórias ao atingirmos esse local, depois de tantos apuros que passamos. Urramos de júbilo com nossa conquista, inebriados, mesmo em face de qualquer temor.

Depois de muito andar, encontramos entre uma região mais estreita, sob o pé dessas montanhas, o que parecia ser um grande portão, feito de um mineral desconhecido. Ficamos desconcertados com seu tamanho colossal. Mesmo de longe, parecia do tamanho de um edifício de vários andares. Enquanto nós nos aproximávamos, percebemos que a porta era muito grande para ser aberta por quaisquer números de mãos, mesmo mãos poderosas, como as do babuíno translúcido enfrentamos. Ainda mais com batentes imensos que se faziam presentes.

Alguns entalhes e imagens presentes no muro também eram um novo mistério, pois, como uma raça cega iria achar necessário ou conseguiria criar signos visuais assim? Não há nenhum motivo para isso.

No mais, a própria porta estava aberta, como se nos convidasse ao descobrimento. Decidimos que apenas um de nós iria se aventurar primeiro, para assegurar a segurança. Para minha sorte (provavelmente, o mais receoso de todos os presentes), Dmitri se voluntariou, querendo mostrar sua bravura cossaca que não temia nem o desconhecido.

Enquanto ele percorria sozinho o lugar, passei a tentar decifrar os significados do que estava representado ali, naquela entrada. Minha hipótese inicial é bem simples: os Umbros apenas tomaram o local ou encontraram-no assim. Desse modo, estariam se adaptando a aquele santuário distante, que, caso estivesse eu correto, seria ainda mais antigo do que seus atuais moradores, escondendo segredos inesperados a todos.

Escuto Dmitri voltar ao portão, nos chamando. Parece que o local está seguro para entrarmos. Devo escrever mais em breve, a respeito de nossas descobertas. Isso se houver algum momento adiante.


10 de Outubro de 1926


Eu não sei se deveria relatar isso... Já se passou uma semana, uma semana horrível e penosa. Eu já não consigo fechar mais os olhos de medo do escuro, apesar de estarmos longe daquele lugar maldito. Eu tenho que escrever, tenho que contar. Estou com uma febre que me aquece e me enfraquece ao mesmo tempo, minha caneta treme e permaneço pouco tempo consciente. Em breve estarei retornando com o resto do grupo ao Morrissey, pois minha situação se agrava cada vez mais, então, devo relatar o que aconteceu em três de outubro deste ano de 1926.

Entramos pela imensa porta ao ouvir o chamado de Dmtri. Ele berrava como quem não temesse ser encontrado. Por um lado isso pareceu muito imprudente, mas visto que não notamos nenhuma coisa errada, sentimo-nos mais seguros com esse gesto, e passamos pela grande porta aberta. Vislumbramos as construções que se erguiam por detrás dos muros, tão absurdas quanto maravilhosas ao mesmo tempo. Grandes espirais construídas apontando para os céus, e a própria encosta das montanhas esculpidas com formas pentagonais de moradia. O que pareciam ser edifícios não possuíam portas ou janelas convencionais, eram apenas buracos que ignoravam noções de arquitetura básica. Pelo menos, as que considerávamos básica em nossos padrões aritméticos.

O chão era asfaltado com pedras polidas e verdes, não tendo nenhum resquício de neve, pois as pedras eram quentes como um pão recém assado. O próprio ar era morno, me lembrando algumas tardes em que andava pelo parque de minha cidade, quando o sol aquecia as poças de água da chuva matutina e sentíamos o calor subir do solo.

Andamos por mais um momento, os outros decidiram inspecionar as construções, enquanto me aventurei a tentar descobrir o exato tamanho do local. Havia um estranho arco em certo ponto, que obstruía a visão do restante da cidade. Era como uma mini montanha, mas feita com uma rocha polida, negra e brilhante, com um túnel cilíndrico, que ficava exatamente um metro acima do chão.

Subi para explorar, enquanto gritava para o resto do pessoal vir olhar aquilo. Minha descoberta era relativamente mais penetrável do que o resto das edificações, que precisariam de escadas para um fácil acesso. Corri novamente como criança, imprudente e leviana, sem temores nem amanhãs distantes, só o constante agora.

Ao sair, fiquei levemente frustrado e surpreso. Andei com passos lentos enquanto os outros vinham me alcançando. Vislumbrávamos um horizonte vazio. Sem construções, criaturas ou qualquer coisa. Descuidado, pisei sem notar em uma estranha armadilha luminosa, que incandescia letras de um alfabeto anterior ao tempo dos homens. Duas riscas se encontravam abaixo da sola de minha bota de couro reforçado.

Enquanto meus companheiros, letárgicos pelo esforço despendido na viagem, me alcançavam, meus olhos vislumbravam um pouco abaixo da linha do horizonte. Além das fronteiras humanas da compreensão. Uma cratera. Extensa e profunda o suficiente para engolir tudo o que havia ali. Eu via o traçado que pisei flamejando dentro de um circulo arcano, provavelmente com alguma razão desconhecida.

No fundo, era possível ver, cintilando, alguma forma avermelhada e sinistra, entre chamas e gases densos.

Eu olhava para o abismo, e ele olhava de volta.

Ao chegar ao meu lado, o Capitão me emprestou sua confiável e potente luneta. É quando eu vislumbro o que parece ser o ovo do diabo. Rubro e partido, que começava a exalar uma névoa pestilenta, logo cobria a extensão da cratera como em uma profana forma alienígena. É quando ela começa a criar formas mais distinguíveis e menos etéreas, mas muito mais aterrorizantes.

Como um feto, flutuando em sua névoa amniótica maldita, seu denso coração é formado. Nansen, o médico Norueguês, vomitou a gordura ingerida nos últimos dias, ao ouvir o coração trovejar como tambores vikings chamando a morte. É quando Dmitri, o herdeiro de Rasputin, decifra o fenômeno. Ele não conhecia o rito, as inscrições ou as conseqüências, apesar de seu conhecimento, mas sabia que a névoa tomava a forma de nossos medos. E enquanto o pavor e a loucura se instalavam, seu olho pairava sobre nós. Foi quando escutamos em nossa mente um eco de eras passadas.

Ahk’tom-Meph. Ahk’tom-Meph. Ahk’tom-Meph.

Nossas almas foram as interpretes. Seu nome só tinha um significado.

Destruição.

A forma “daquilo” era difícil de descrever, era como se toda a verdade do mundo se, tornasse mentira, em um segundo. Meu cérebro derreteu, meu grito, minha voz morreu e tudo o que eu sentia fugiu por entre o negro da retina de meus olhos. Havia uma massa de carne disforme perante nosso grupo que arrancou o fôlego de todos. Ele possuía olhos gigantes, do tamanho de barcos menores, quatro para ser preciso, um mirado para cada ponto cardeal. Além disso, grandes tentáculos balançavam aos céus, como os de um polvo, mas consegui distinguir olhos mais sinistros de um dos lados da ponta de seta que haviam em cada um de seus “braços”, enquanto uma boca saía do outro lado. Acima de sua cabeça, mal pude notar, mas conjecturar uma abertura, como uma coroa sinistra, e a boca para a entrada do próprio inferno.

Foi quando a terra tremeu, a criatura se moveu pelo solo, e eu, um incauto congelado na beira da cratera, escorreguei para aquele fosso. Não senti nenhuma dor, veja bem, minha mente estava desligada naquele momento. Por sorte ou por azar, não morri durante a queda, nem acabei parando no fundo daquele grande buraco, mas acabei em uma irregularidade no declive, com minha perna deslocada. Não urrei, nem gritei, continuei focando, inerte, o que via mais próximo do que antes.

Meus olhos perceberam os invisíveis Umbros, dançando ensandecidos em cima de uma poeira prateada, como pó de estrelas, revelando suas formas e movimentos ao redor daquele... Deus. Não sei, devo me censurar por chamar aquilo desse modo, mas, o sentimento parecia o mesmo. Entretanto era como ver a face da Onipotência, a cólera divina que não tem um lado generoso para com o mundo.

Lentamente, o tentáculo acertava um grupo deles, e eu podia ver a carne esponjosa desse braço maligno absorver as argênteas silhuetas bailantes. Era um sacrifício pleno, um genocídio ritual que eles faziam. Com sua própria carne, eles completavam o ser que saiu do estranho ovo. Se pudesse raciocinar, eu diria que fora aquele o misterioso objeto que caiu dos céus dias antes, como uma anunciação desse pesadelo.

Subitamente, não haviam mais babuínos sapateando. Todos foram engolidos pela criatura glutona, e assim, como se sentisse algo em seu brio, ela começou a mover, com algum nítido desespero. Pude notar, pois, imerso nesse mesmo sentimento estava eu, e vi-o seguir em minha direção.

Seus tentáculos maiores me erraram. Não eram a mim que eles procuravam, mas eu pude perceber que a ausência de pés foi suplantada com milhares de pequenos tentaculinhos para lhe oferecer suporte. Foi com um terror mudo que senti a sombra bloqueando o sol, o frio da minha pele acompanhou enamorado com o da minha espinha, enquanto ele eclipsava a minha vida em cada centímetro que se movia.

Senti como se tivesse caído no leito do rio estígio, e mãos sem dedos, de braços de disformes condenados a nadar naquele leito de morte, tentassem em vão me segurar para afundar com eles. As próprias dimensões e pontos relativos da gravidade de Newton não se aplicavam. Eu caía mesmo deitado no chão, e era dragado ao topo pela sensação imunda de ventosas percorrendo o meu corpo.

Eu esperava pela morte, durante aquele ato horrendo que sofria, mas ela não veio. Cada palpitar do meu coração durava eras para se passar, pois a criatura, apesar de aparentar pesar como um pequeno país, apenas me fazia sentir aquele mal estar supremo. Meus ossos que estavam intactos no momento que ela se aproximou, permaneceram do jeito que estavam como se fosse apenas uma cortina de água fria correndo por mim.

Eu me virei, para ver o que a criatura pretendia. Ela andou por cima das construções, e por cima das montanhas. Provavelmente, esperando o último naco de realidade que precisava devorar, uma última parte essencial, assim como todas as outras. O guardião que arrogante caiu perante nosso grupo e rumava morto para a embarcação. Eele parecia o sentir e seguir, mas não teve tanta sorte, pois tão rápido quanto se formou da simples fumaça, passou a sumir. Ao chegar ao cume além do horizonte, já não havia mais nada a se temer, além da dor das lembranças.

Fui carregado para fora por meus incrédulos companheiros, perdendo a consciência por dias. Foi me relatado que um estranho movimento, um dia depois que saíram do local às pressas, soterrou com uma quantidade infinita de gelo aquela cidade maravilhosa, lar de horrores. Improvisaram uma maca e depois de três dias de viagem, acordei febril demais para saber que estava acordado, de fato.

Estou usando de minhas forças nesse raro momento de consciência para fazer este último relato. Já não encontro mais forças e o sono me chama, meus músculos se desfazem, só me deixando as pálpebras pesadas demais para permanecerem erguidas.

Após a grande catástrofe, nos recolhemos com os cacos que sobraram. Houve aqueles que se juntaram para poderem se reerguer após dessa abissal contenda, como Nansen e o Capitão, que jurou nunca mais relatar esse absurdo, nem mesmo a sua própria mente, sendo que somente neve ele jura ter visto.

Teve aquele que se voltou para si, na solidão, pensando a respeito dos “comos” e “porquês”, das coisas terem acontecido dessa maneira. Como Dmtri, que mesmo crendo conhecer feitiços, bestas e segredos além da pólvora, tentava explicar a si mesmo o que era aquilo.

E ainda um que, mesmo estarrecido com a nova descoberta, parecia vidrado com as possibilidades de eventos e infinitas portas que se abriam... Para pior, ou para melhor... Como era Holden Frost, que não parava de escrever em seu guia, a situação atual.

Quanto a mim, restou-me o papel de salvaguardar os registros dessa história. Sabendo que a partir desse ponto, nada seria o mesmo, nada ser impossível, tudo seria... Inevitável...


E meus amigos, foi isso que eu escrevi na ocasião. A bordo do Morrissey, perdi minha consciência muitas vezes e não consegui me lembrar de nada, nem uma gota de memória.

De volta a Europa, fora me recomendado passar uns tempos em Viena, onde eu veria alguns dos melhores médicos e psiquiatras a disposição de meus patronos, pois obtive tiques incessantes, meus olhos piscam em coordenadas aleatórias, minha boca range de frio mesmo ao pé de uma lareira e minhas mãos se contorcem como folhas ao fogo todas as vezes que ficam molhadas.

Deitado, eu me questiono se o que eu vi não foi a razão a qual nós não deveríamos existir, como se tudo que eu já tinha lutado para aprender anteriormente tivesse apenas me levado a descobrir que estava certo, que toda a humanidade não passa apenas de grãos de areia insignificantes no deserto árido que é o universo.

Agora eu me recolho a minha alcova, deito-me todos os dias com um colchão feito de inúmeros travesseiros, que me dão a sensação de estar afundando em algum lugar longínquo, para além deste meu corpo, para além deste mundo...


- Fim -

Um comentário:

Anônimo disse...

Elaiaa, ta muito bom isso aqui Tadeuzin.